O Estado de S.Paulo 29 de março de 2014 | 2h 04
Rolf Kuntz*
A grande ambição do governo deve ser, nesta altura, um ano tão bom ou tão ruim quanto 2013, na economia brasileira, mas até esse desejo será frustrado se as novas projeções do Banco Central (BC) estiverem certas. A presidente Dilma Rousseff está arriscada a completar quatro anos de mandato com um crescimento médio de apenas 2% ao ano e os principais indicadores caindo pelas tabelas - tabelas de produção, de inflação, de investimento e de comércio exterior. Os dados e previsões divulgados durante a semana por várias das principais fontes de informação econômica - BC, Tesouro, Ipea, Confederação Nacional da Indústria e Fundação Getúlio Vargas - parecem ter sido elaborados para apoiar a Standard & Poor's (S&P) e justificar o rebaixamento da nota de crédito do País, anunciada na segunda-feira à noite.
Noticiado o rebaixamento, o ministro da Fazenda estrilou, a presidente ficou irritada, como sempre, e até o BC soltou uma nota sobre o assunto, com uma estranha referência a "austeridade na condução da política macroeconômica". Não se sabe se foi gozação, mas a nota, embora curta, foi alinhada com o discurso oficial.
Será difícil encontrar essa austeridade nas contas públicas divulgadas nesta semana. Segundo relatório do Tesouro, a receita do governo central no primeiro bimestre, R$ 212,11 bilhões, foi 9,6% maior que a de janeiro e fevereiro de 2o13. Descontadas as transferências a Estados e municípios, sobrou uma receita líquida de R$ 168,34 bilhões, 7,3% superior à de um ano antes. A despesa total, R$ 158,46 bilhões, foi 15,5% maior que a do bimestre inicial do ano passado. O gasto com pessoal e encargos, R$ 35,67 bilhões, aumentou 13,5% na mesma comparação. Como resultado, o superávit primário, R$ 9,88 bilhões, foi 49,8% menor que o do período correspondente de 2013.
Não foi um começo brilhante para quem promete chegar a dezembro com um resultado primário - para todo o setor público - equivalente a 1,9% do produto interno bruto (PIB), proporção igual à obtida no ano passado. A maior parte do superávit primário de 2013 foi obtida com receitas especiais (dividendos elevados, bônus de concessões e arrecadação inicial de uma nova renegociação de dívidas tributárias) e com alguns truques, como o adiamento para o começo do ano de algumas transferências e pagamentos. A Standard & Poor's e outras agências de classificação conhecem esses lances, como a imprensa e os analistas do setor financeiro e das consultorias.
Também ruim foi o quadro geral do setor público - União, Estados, municípios e estatais - divulgado pelo BC na sexta-feira. O resultado primário do primeiro bimestre caiu de 5,29% do PIB em 2012 para 3,66% em 2013 e 2,73% neste ano. O déficit nominal (incluído, portanto, o pagamento de juros) chegou a R$ 20 bilhões em janeiro e fevereiro e a R$ 161,9 bilhões em 12 meses (3,3% do PIB). É proporcionalmente menor que o de vários países desenvolvidos, mas os juros cobrados pelos financiadores do Brasil são bem maiores - detalhe frequentemente negligenciado nas arengas oficiais.
Na mesma semana o BC despejou um balde de más notícias e de projeções muito ruins, complementos perfeitos da argumentação apresentada pelo pessoal da Standard & Poor's. O déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, US$ 19,03 bilhões nos primeiros dois meses, foi 6,19% maior que o de um ano antes. As estimativas para 2014 foram revistas pela primeira vez em vários meses. O buraco estimado para a conta corrente passou de US$ 78 bilhões para US$ 80 bilhões, muito próximo do contabilizado em 2013, US$ 81,37 bilhões.
O valor estimado para o superávit comercial diminuiu de US$ 10 bilhões para US$ 8 bilhões. A variação corresponde à revisão, para menos, da receita prevista para as exportações (US$ 253 bilhões na versão atual). O aumento de apenas 4,47% projetado para as exportações de bens reflete as condições da indústria. Pela nova estimativa, a produção industrial deve crescer 1,5%, pouco mais que em 2013 (1,3%). O desempenho da indústria de transformação continuará péssimo, com expansão de 0,5% (1,9% no ano passado). O pessoal do BC parece ter pouca ilusão quanto à competitividade do setor. O crescimento do PIB foi revisto de 2,3%, o mesmo de 2013, para 2%. Mas agora se projeta uma inflação de 6,1%, maior que a do ano anterior (5,9%).
O aumento da inflação é indisfarçável. O último dado apareceu na sexta-feira. O Índice de Preços Gerais do Mercado (IGP-M) subiu 1,67% em março. Em fevereiro havia aumentado 0,38%. A maior pressão veio dos produtos agropecuários, com alta de 6,16% no atacado. No varejo, a alimentação encareceu 1,55%. Foi o fator principal do aumento de 0,82% dos preços ao consumidor. A conversa, agora, é de uma nova inflação dos alimentos. É bom ter cuidado com essa conversa.
O famigerado vilão da inflação pode variar de um ano para outro e até de mês para mês, mas o aumento geral e persistente dos preços ocorre somente quando há condições de repasse, de contágio dos demais preços e de realimentação da ciranda. A nova pressão dos alimentos é recente. Em 12 meses, os preços industriais subiram 8,45% no atacado, enquanto os agrícolas aumentaram 5,77%. O problema, portanto, está longe de ser a alta desta ou daquela categoria de preços. É mais amplo e está associado a fatores como crédito, gasto público, renda das famílias e expectativas de consumidores e empresários. O governo tem negligenciado a sua parte e o BC aceitou por longo tempo, até abril do ano passado, a política de juros da presidente da República.
Apesar de alguma acomodação do consumo, o desequilíbrio no mercado interno permanece. A indústria continua incapaz de atender à demanda, como se reconhece na nova Carta de Conjuntura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O desajuste reflete-se na alta de preços e na deterioração do comércio exterior. O cenário é bem conhecido. Só o governo parece ignorá-lo.
*Jornalista