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domingo, 17 de outubro de 2010

DESIGUALDADE SALARIAL E DEMOCRACIA

Desigualdade e democracia - 15/10/2010 às 20h01m;
Artigo do leitor Rogério Antônio Lagoeiro de Magalhães*


Só mesmo a alienação do debate político corrente explica que a questão da desigualdade no Brasil não tenha tido papel central no atual processo eleitoral. O que deveria ser o foco da campanha foi trocado por temas que, fora das repúblicas teocráticas, como a do Irã, não deveriam receber tanto espaço nos debates políticos, como aborto e casamento gay. Na verdade, o que devia nos preocupar é o fato de que, no ranking da ONU, o Brasil continua sendo o terceiro país mais desigual do mundo e na América Latina, o mais desigual dos continentes, só perdendo para o Haiti e a Bolívia.

A questão da desigualdade no Brasil, que deveria ter tido papel central no atual processo eleitoral, foi trocada por temas como aborto e casamento gay
Esse padrão de desigualdade é simplesmente incompatível com a posição brasileira na economia mundial do século XXI - assim como a persistência da escravidão se tornou incompatível com o mundo na virada do século XIX e nos impôs a industrialização do século XX. Enquanto não conseguirmos equacionar uma perspectiva de solução para esse problema, a democracia entre nós estará sempre à beira do colapso.

Mas se, pelo contrário, a evolução política que se espera venha a se sobrepor ao retrocesso que nos ameaça, será possível abrir a perspectiva de uma discussão objetiva (vale dizer, livre de ideologias, preconceitos, demagogias, subterfúgios e até de teorias ultrapassadas) sobre a questão da distribuição de renda na economia brasileira e suas implicações para o desenvolvimento. De qualquer forma, ela terá que partir de uma constatação ofuscante: a de que, segundo pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconomicos), o valor real do salário mínimo, em 2010, mesmo com todos os aumentos recentes, ainda é inferior ao de 1945 (!), embora todo o crescimento da economia e da produtividade do trabalho desde então.

Entre as causas que, depois de um século de industrialização, explicam o subdesenvolvimento remanescente da economia brasileira, certamente o aviltamento histórico do pagamento do trabalho estará entre as principais. O salário mínimo é o agente eficiente da repartição capital/trabalho e sua defasagem histórica é o grande fator da desigualdade no Brasil de hoje. O número dos que o recebem não é pequeno e, na prática, a correção do salário mínimo influencia os salários superiores, principalmente aqueles no seu entorno imediato. Conceitualmente, por outro lado, o mesmo montante adicional (não o percentual de aumento) concedido ao mínimo, teria que ser linearmente incorporado a todos os demais salários, como correção da parcela homogênea de trabalho-simples que todos embutem.

O salário mínimo é baixo porque o país é pobre e a massa de trabalhadores tem baixa qualificação. A recuperação do salário mínimo não pode, entretanto, ser debitada a nenhum desenvolvimento futuro, como à própria continuidade do crescimento da economia, ou mesmo à generalização prévia da educação de qualidade. Quanto ao primeiro ponto, a experiência histórica desmente a correlação, quando revela a trajetória de queda contínua do valor real do salário mínimo, desde sua implantação em 1940, frente ao grande crescimento do PIB e da produtividade do trabalho desde então; quanto à generalização prévia da educação de qualidade, cuja necessidade é hoje um consenso nacional, inclusive como condição para a própria continuidade do crescimento, cabe ponderar que educação sem renda terá os limites da experiência dos Cieps, em que a escola de tempo integral se pretendia uma redoma para retirar o aluno da realidade ambiente. Educação de qualidade pressupõe aluno de qualidade. Isso é inseparável de um certo grau de condições materiais de vida da família, que só se pode prover, de modo generalizado, através da melhoria dos rendimentos do trabalho, mas nunca pela via do assistencialismo direto.

Enquanto não conseguirmos equacionar uma perspectiva de solução para a desigualdade no Brasil, a democracia estará sempre à beira do colapso
Em economia, as coisas só funcionam quando se unem todas as pontas, a ponta do salário à do crescimento, a do aumento de investimento à do emprego. Enquanto a educação de qualidade aponta para o futuro, a persistência da distorção salarial vem do passado e determina o presente. Por outro lado, se o baixo nível de educação formal da população explica os baixos rendimentos da massa trabalhadora, isso não pode ser usado para justificar o baixo valor do salário mínimo, já que a qualificação não é um pressuposto do pagamento devido ao trabalhador simples. Assim, o país é pobre e a massa trabalhadora tem baixa qualificação porque o salário mínimo é baixo.

Segundo o Dieese, para atender ao disposto no artigo 7, item 10, da Constituição de 1988 ("prover o atendimento das necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família, com relação à moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social"), o valor do salário mínimo, hoje, deveria ser de umas quatro vezes o vigente.

Porém, poucos se dão conta de que não é só uma questão de valor, mas, sobretudo, de que a definição constitucional vigente aproxima o trabalhador moderno dos escravos de antigamente: a estes também eram mais ou menos supridas as "necessidades vitais básicas", pelo menos até onde interessasse a preservação do capital neles investido.

Mais do que um aumento, o que se precisava mesmo era de uma redefinição do próprio conceito de salário mínimo. Deixar a ótica paternalista-demagógica "daquilo que o trabalhador necessite ou deixe de necessitar", e adotar a ideia "daquilo a que o trabalhador tem direito e que a economia pode e deve pagar".

Na sua determinação técnica, o salário mínimo economicamente devido corresponde à produtividade padrão da economia hoje, o que pode ser determinado por uma pesquisa específica do IBGE e não deve estar muito longe da cifra que o Dieese reclama, tendo em vista a defasagem histórica acumulada. Claro que uma defasagem dessas não pode ser corrigida por um mero decreto de aumento. Requer todo um planejamento de reordenação dos preços relativos em torno dessa nova referência salarial, em que se preveja, inclusive, o apoio às empresas durante a transição. A metodologia a adotar seria semelhante à do Plano Real, que, num prazo curto (quatro meses) de coordenação do ajuste dos preços relativos em torno do mecanismo da URV, logrou dar fim a um processo inflacionário agudo. Precisamos encarar isso de frente. Se os dois candidatos quisessem, ou soubessem, ir além da "intuição distributiva" do governo Lula, poderiam ter trazido à discussão alguma proposta do gênero - mas não, preferiram discutir aborto e casamento gay.

* Rogério Antônio Lagoeiro de Magalhães é economista

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Neste artigo, o autor prova através do Dieese que nossa constituição é violada e desrespeitada pelos senhores do Poder. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos é uma criação do movimento sindical brasileiro que foi fundado em 1955 para desenvolver pesquisas que fundamentassem as reivindicações dos trabalhadores. Ao longo de 50 anos de história, a instituição conquistou credibilidade, nacional e internacionalmente, sendo reconhecida como instituição de produção científica.

O autor disse que o Dieese reconheceu que, "para atender ao disposto no artigo 7, item 10, da Constituição de 1988 ("prover o atendimento das necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família, com relação à moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social"), o valor do salário mínimo, hoje, deveria ser de umas quatro vezes o vigente."

PERGUNTO: Quem viola a lei maior de um país deveria ser penalizado pela guardiã da lei - a justiça? Ou então esta lei é só de papel - não serve para nada.

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